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domingo, 12 de abril de 2009

Um livro sobre o amor à leitura

Aula de francês em Perpigan (sul da França), lá estava este projeto de escritora, na sala, sentada durante o intervalo. Chega um senhor – aparentava ter uns 40 e poucos anos – de cabelos grandes, lisos e aloirados. “O que você está lendo?”, perguntou-me. Mostrei La Curée de Émile Zola e ele com um sorriso (uma das características mais marcantes dele) perguntou o motivo. Falamos um pouco da obra, do meu curso de francês no Brasil. Na segunda, terceira vez que veio conversar comigo eu estava sem saber o que falar. Explico: além da minha típica timidez, o Monsieur era meu professor de francês, o qual falava a língua perfeitamente (óbvio!), de uma maneira tão sonora e tão bela que parecia o canto de uma sereia.

Foi então que, como um ato de defesa, para ter o que falar e não ficar tomada pelo silêncio, pedi-lhe algumas dicas de leitura. Ele perguntou que gênero eu gostaria de ler e respondi que “queria uma leitura moderna”. Monsieur G. então me questionou o que era moderno para mim. “Da década de 60 até hoje”, falei. Ele disse que me recomendaria três autores franceses que não eram “comerciais” apenas, que “sobreviveram” devido à boa literatura.

Pesquisa no site da Fnac. Ohlala... quantos livros!! “Monsieur G, será que o senhor poderia ser mais específico e me recomendar um livro de cada autor?” Ele passou a mão pelos cabelos esvoaçantes, refletiu e escreveu no meu caderninho três nomes: Le chercheur d’or (Le Clézio), Vendredi ou les limbes du Pacifique (Michel Tournier) e Comme um roman (Daniel Pennac).

No último dia de aula, dia de receber o diploma, encontro Monsieur G. na sala em companhia de Monsieur H. “Professor, olha aqui o que achei”, falei toda empolgada. Monsieur F. olhou para mim, de um sorrisinho malicioso e comentou: “Ótimas escolhas! Três estilos completamente diferentes.” Monsieur G. olhou o colega e respondeu todo orgulhoso: “São minhas recomendações.”

O tempo passou, voltei ao Brasil e me pus a ler outras coisas, deixando de lado o que Monsieur G. me havia recomendado. A saudade dos amigos que fiz em Perpignan, a vontade de voltar à França, o amor pela literatura francesa aguçado pelos meus professores de francês no Brasil... tudo isso me fez procurar, no meu modesto acervo, as recomendações pelo Monsieur G..

Lembro que, na época, eu não tinha pensado nos motivos daquelas indicações. Hoje descobri dois: Le Clézio cursou o PhD na Universidade de Perpignan; Daniel Pennac faz uma verdadeira declaração de amor à leitura no livro Comme um roman.

E esse é o objetivo deste texto: versar (ou pelo menos tentar) sobre Comme um roman. Trata-se de um livro prazeroso de se ler que possui quatro capítulos: I – Naissance de l’alchimiste; II – Il faut lire (le dogme); III – Donner à lire; IV – Le qu’en lira-t-on (ou les droits imprescriptibles du lecteur). Os subcapítulos são curtos; alguns com apenas uma citação. A linguagem é acessível e tem-se a impressão de que o escritor dialoga a todo o momento com o leitor.

O livro é sobre o processo de aprendizagem da leitura e da escrita; o amor pelos livros; os motivos que impedem alguém de gostar de ler. Tudo escrito de uma maneira leve, divertida, com uma pitada de ironia que somente aguça a vontade de devorar essa obra.

Daniel Pennac começa contando a história de um casal que tem um filho adolescente que não quer ler. Os pais se questionam sobre o que deu errado. Nem o casal nem o garoto tem nome, sendo assim, as personagens poderiam ser qualquer um: na França ou no Brasil. A segunda parte do livro se passa na escola e mostra o que faz um professor (o narrador) para fazer os alunos se interessarem pela leitura. Diz Pennac que “ler se aprenda na escola. Amar ler...”.

Mas, às vezes, é possível achar um professor que desperte o amor dos alunos pela leitura, “sua própria vivacidade, graças ao esforço que se transforma em prazer”. É preciso expor o amor pela leitura para que ela seja benquista pelos pupilos. “Uma leitura bem escolhida salva de tudo, inclusive de si mesmo. E, acima de tudo, lemos contra a morte”, escreve o autor.

Quando a leitura é feita de maneira prazerosa sentimos vontade de dividir o que lemos com os outros, com os entes queridos. Queremos compartilhar o que preferimos com “nossos preferidos”.

A leitura termina sendo um paradoxo, pois Pennac fala tanto do silêncio quanto da leitura como forma de comunicação. Quanto ao primeiro aspecto comenta Daniel Pennac: “O prazer do livro lido, nós o guardamos frequentemente no segredo por causa do nosso ciúme. Seja porque não vemos aí algo para discutir, seja porque, antes de puder dizer uma palavra, deve-se deixar o tempo fazer o silencioso trabalho da destilação. Esse silêncio garante a nossa intimidade. O livro é lido, mas nós ainda estamos lá. A única evocação a ele abre um refúgio no nosso refúgio. Ele nos preserva do Grande Exterior. Ele nos oferece um observatório plantado em paisagens contingentes. Nós lemos e ficamos calados. Nós ficamos calados porque nós tínhamos lido.” A leitura, entretanto, não é apenas o silêncio. Ela é uma estratégia de comunicação quando, num salão (ou numa sala de aula?! Qualquer semelhança talvez não seja mera coincidência) não se tem o que dizer ao outro. “Se a leitura não é um ato de comunicação imediata, ela é, finalmente, objeto de comunhão. Mas uma comunhão distinta e selvagemente seletiva.”

O que impediria a todos de serem ávidos leitores, então? Às vezes, tem-se medo de ler porque há, embutido, um medo de não compreender. Pennac diz que esquecemos que um romance deve ser lido como um romance, o qual, primeiramente conta uma história. Para saciar nossa forma de ficção ficamos em frente à tela (não importa se é a telinha ou a telona)... passivos. Mas isso funciona apenas como algo que forra o estômago, sem saciar realmente a fome. “Nós nos sentimos tão sós quanto antes.” Enquanto lemos, ocorre o contrário; o autor dialoga conosco, conta a história somente para nós; há uma cumplicidade. O prazer do romance é essa descoberta de intimidade entre autor e leitor. Uma vez que nos reconciliamos com a leitura, que o texto perdeu o aspecto de “enigma paralisante”, o esforço que se faz para extrair o sentido dele se torna um prazer e “o prazer de compreender me mergulha quase na embriaguez da ardente solidão do esforço”.

Outro impedimento à leitura é o tempo para leitura, visto como “uma ameaça à eternidade”. Começamos a nos perguntar o que iremos sacrificar para dedicar algumas horas, alguns minutos à leitura. Pennac responde: “Quando nos perguntamos sobre o tempo para ler é porque o desejo de fazê-lo não existe. Pois, se olharmos isso de perto, ninguém jamais tem tempo de ler. A vida é um entrave perpétuo à leitura. O tempo de ler é sempre um tempo roubado (assim como o tempo de escrever ou, finalmente, o tempo de amar). Roubado de quê? Digamos que do dever de viver.” E ele continua: “O tempo de ler, como o tempo de amar, dilata o tempo de viver.” Ele diz que essa discussão não é para saber se há tempo para ler ou não, mas se me ofereço a alegria de ser um leitor.

Um assunto também abordado em Comme um roman é o relacionamento do livro (matéria em si) com o leitor. Como nos tornamos possessivos e ciumentos com nossos livros. Mas esse é o preço da intimidade. É por isso que, na maioria das vezes, temos dificuldade de devolver um livro que tomamos emprestado. “Não é exatamente um roubo (não, não, não somos ladrões, não...), digamos que é um deslizamento de propriedade, ou melhor, uma transferência de substância: se o que estava sob o olho do outro se torna meu enquanto meu olho o devora; e, se eu amei o que eu li, eu provo alguma dificuldade de ‘devolvê-lo’.”

O livro não deixa de ser um “produto da sociedade hiperconsumista. Visto por este ângulo, o livro não é mais nem menos que um objeto de consumação, e é também tão efêmero quanto esse objeto: imediatamente passa à pilha; se ele ‘não funciona’, morre mais rápido sem ter sido lido”.

Ao ler o livro fiquei temerosa em escrever sobre ele já que Pennac fala que nós que amamos ler e queremos propagar o amor à leitura, certas vezes, nos “preferimos” mais como hermeneutas. A palavra do livro dá lugar a nossa. Geralmente não deixamos a inteligência do livro falar pela nossa boca e a remetemos a nossa própria inteligência ao falar do texto. “Nós não somos os emissários do livro, mas os guardiões semeadores de um templo no qual expomos as maravilhas com as nossas palavras que fecham as portas. ´Tem que ler! Tem que ler!’”. É como se ao dizermos “tem que ler” acabássemos a descoberta pelo prazer da leitura. Nosso papel é apenas despertá-lo.

Porém, não poderia deixar de dividir com vocês o amor que sinto pela leitura e a delícia de ler esse livro. Não poderia, conforme pensamento do autor, deixar de falar de um dos meus (livros) preferidos para os meus preferidos (meus queridos leitores).

Cá estou, então, terminando este artigo, e, volto a pensar naquele senhor alto, de cabeleira loira e vasta, sorriso nos lábios. Lembro-me, por conseguinte, de uma passagem de Comme um roman: “Quando alguém que nos é caro nos dá um livro é ele quem procuramos, primeiramente, nas linhas, seus gostos, as razões que o impulsionaram a nos meter esse livro nas mãos, os sinais de fraternidade. Depois, o texto nos absorve e nós esquecemos aquilo onde mergulhamos; é o poder de uma obra.” Recordo-me de Monsieur G., pergunto-me se voltarei a vê-lo, penso em como gostaria de agradecê-lo por ter me apresentado a uma parcela – pequena, no entanto, que não deixa de ser importantíssima – da leitura francesa, por ter estimulado minha curiosidade por ela. Todas as vezes nas quais eu olhar ou folhear Comme um roman, lembrarei de Monsieur G., pois “os anos passam e acontece que a evocação do texto nos remete a uma lembrança do outro. Alguns títulos se transformam novamente em rostos”. E Comme um roman se transformara em um rosto alvo, emoldurado por longos e lisos cabelos loiros.


Para saber mais:




Livro: Comme un roman
Autor: Daniel Pennac
Editora: Folio France
ISBN: 8576290847
Número de páginas: 208





Livro: Como um romance
Autor: Daniel Pennac
Tradutor: Leny Werneck
Editora: Rocco
ISBN: 8525417971
Número de páginas: 152

Um comentário:

Eveline disse...

Ju! Como sempre, adorei o texto, adorei a dica! E fico feliz em dizer que permito " a alegria de ser uma leitora". E me alegro em ser sua amiga-leitora, compartilhando desse universo =)